só tive a oportunidade de conhecer uma bisavó. recordo-lhe a indumentária sempre preta, com o lenço na cabeça, que até hoje me impede de saber qual seria a cor do seu cabelo. andava sempre com bolachas nos bolsos das batas e recordo como aquilo me sabia bem, nos meus quatro/cinco anos, e tenho poucas mais recordações desta senhora.
lembro-me de quando morreu. lembro-me que estava num jantar que reunia benfiquistas, quando se soube a notícia. no dia seguinte, os cá de casa, foram para a terra da minha bisavó, onde o corpo era velado em casa. lembro-me que era proibido comer carne, que o nível de som não podia ser muito alto, porque seria uma vergonha se se ouvisse na rua o som da televisão ou do rádio, uma vez que, o corpo estava a ser velado na casa ao lado. os primos tinham que estar imóveis e serenos, apesar da curta idade.
lembro-me do choro da minha avó e do meu tio-avô, lembro-me da reunião dos vizinhos à porta de casa, do caixão a sair directamente do quarto para a rua, pela janela. lembro-me dos gritos. e lembro-me de ser o primeiro funeral a que fui, o primeiro em que me perguntaram se queria ir e lembro-me sobreudo que não conseguia partilhar daquele constrangimento, de alguém que até já era "velha". Ela, distante. Ela, acamada. Ela, que não vivia por perto. Ela, que era do meu sangue, mas com a qual eu não conseguia partilhar grandes sentimentos. Olho para trás, recordo-me dos gritos, do sofrimento e percebo que quando vamos a um funeral e dizemos "os nossos sentimentos", é isso mesmo, é o admitir de que não conseguimos sentir como eles, a família próxima, os amigos mais chegados. são só os "nossos sentimentos". Há esta inevitabilidade de nunca saber o que sofre quem está dentro do sofrimento, até que um dia chegue a nossa vez e aí talvez seja mais perceptível a dor alheia.
Sem comentários:
Enviar um comentário