segunda-feira, 20 de junho de 2011

BRANDOS COSTUMES...

"A velha descasca maçarocas no umbral da porta que dá acesso a uma das milhentas casas idênticas e de aspecto antiquado que ensombram as ruas da Estrela e de Campo de Ourique. Lamenta os joanetes que fazem prender o rabo rotundo a uma cadeira todo o dia, em geral, e a péssima visão, alegando ser a implacável idade a única responsável por isso. Chama a vizinha Albertina, e a Dona Miquelina à saída da mercearia, e não-sei-quantas mais "-inas" que dividem o tempo entre a afeição aos gatos, à choraminguice de uma reforma que não sabem gerir e do amor pelos netos e o chafurdar em fotografias antiquíssimas que o tempo amareleceu. Comentam, ávidas e sedentas de motivos para trocar por palavras os pensamentos corrompidos, segundo fazem constar, pelos muitos episódios dignos de Hollywood que lhes atravessaram o caminho durante os tempos áureos da sua vida. A Dona Lurdes, a matriarca rica que reside na mansão no final da rua, com o seu gradeamento verde-aquamarinho e estátuas que fazem lembrar os ditames lindíssimos da minha tão desejada expedição à terra da Santa Sé, palco de carnificinas mil que a História decidiu repetir ad nauseam, como se de um diabólico jogo de cadeiras se tratasse, não lhes (como é a expressão na moda desta juventude que se diz à rasca)... passa cartão, assim é que é, nada deve macular o seu bom nome e prestígio de uma família que em tempos idos foi mui fielmente admitida por el-Rei D. Carlos, o Diplomata e que, de cuja existência, actualmente, não lhe restam senão resquícios de memórias de família e diários putrefactos, que contam a história de outra maneira. Tampouco, conversar com aquelas plebeias jurássicas que se acotovelam todos os dias ao balcão da boutique de pão da esquina, para saber quem são os mortos do dia e mordiscar uma torrada seca.
No final da rua, está o Joãozinho das obras, mente obstinada que grita com a mulher porque lhe falta o álcool em casa; no entanto, na taberna, será difícil obra não satisfazer esse requinte vicioso até onde o fígado e a boca lho permitirem. O futebol, mui nobre e supremo desporto-rei, é o tema dominante, que por meio de portas e travessas, um alvitrar aqui e um redarguir ali acendem as mais que gastas acendalhas da discussão sobre o contrato milionário de Fábio Coentrão pelo Real Madrid ou sobre a injustiça do árbitro que ditou a derrota reiterada contra a Grécia, faz já não-sei-quantos anos. No meio dos guinchos de índole quase zoológica e do estrebuchar entre mesas imundas e chão escorregadio devido à escorregadia mão de quem já perdeu o norte há muito, uma alminha farta do convívio alcoólatra dispensa-se a si mesmo e decide fomentar a sua coscuvilhice, rodando os polegares dentro dos bolsos, qual figa, à falta de melhor ocupação. Ao passar pela avenida, nem reconhece o valor belo do céu azul ou do chilreio incessante dos pássaros que aqui e ali brindam crianças satisfeitas e enroladas em brincadeiras de gaiatos para quem tudo é uma descoberta, uma novidade fantástica. Entra pela porta reluzente da boutique de pão, e observa o televisor a regurgitar as ignomínias levadas a cabo contra os cidadãos pelo Governo socialista, e essa abominável forma de comunicação social estende-se como um vapor denso e liquefeito até à esplanada banhada de sol, onde famílias enchem todas as cadeiras metálicas já cansadas de servir de prateleiras para aqueles rabos gordos. Discute-se política na mais pobre das versões, num ruído tonitruante do infecto do mecânico que, muito convicto, considera ser culpa do Governo os desgraçados dos receptores de RSI não terem emprego, brandindo o jornal no nariz dos vizinhos que o ouvem de forma quase hipnótica. Nem sequer se dá, por um momento, conta de que os seus filhos tropeçam nas pessoas e mascam batatas fritas com regozijo, como se isso fosse o alimento mais prazenteiro e saudável do mundo, as mulheres, vulgo galinhas, falam mal da irmã da colega de trabalho porque adquiriu um iPhone e do marido que comprou um automóvel de cinco lugares melhor que o delas, porque ele é um pé-rapado que não tem onde cair morto e deve ter contraído um empréstimo ao banco para comprar uns cortinados de dez euros e servir a mesa à família toda a semana, já que a esposa, muito servil e competente, advoga apaixonadamente que os números do INE são claros, e nem para ela, portadora de três brilhantes canudos obtidos pela Nova de Lisboa a custo, existe uma função adequada, visto que é uma desonra e uma perfídia oferecerem-lhe um terço do salário a que tão mal estava habituada. Gucci para quê? Agora nem para canja de galinha.
E é assim o triste e fiel retrato da sociedade portuguesa. Diaboliza a esquerda e responsabiliza-a pela sua falta de capacidade de economia e gestão, de instrumentalização dos seus haveres, e pela sua constante e repetitiva incompetência enquanto actores sociais. Agora... a direita deles que os governe, já que tão sábia se afigura. Continuai, senhores, com o mesmo savoir-faire de sempre... e vereis onde pára o barco que um dia descobriu a Taprobana."

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