sábado, 18 de abril de 2009

Consolação!!

Cada vez mais concordo com Ruy Belo quando referia que o problema dos mortos é o dos vivos.
Aqui está um poema dele, porque eu também ainda tenho cara de vivo.

"Um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri

di-lo-á decerto com pena mas sem o alívio que eu próprio decerto senti

primeiro ao solucionar de vez esse problema de respiração que a vida é

desde a convulsão da criança que a meio do copo deixou ir leite para a traqueia

até a instantânea atrapalhação do mergulhador a quem de súbito falta o ar comprimido

só dispõe da reserva e lhe faltava tanto que ver no fundo sonhador do mar

depois senti alívio porque às vezes a meio por exemplo da aragem na face

eu pensava na morte como problema metafísico a resolver pelo menos com higiene

se não com dignidade com acerto como mais um problema à medida do homem

Eu estava do lado dos vivos estou do lado dos mortos

o grande problema era saber se me doía ou se não me doía

agora nem sei se me doeu ou não ou fui um mero espectáculo de mau gosto

para a única pessoa encarregada de me ajudar nesse momento

Ninguém a princípio terá sabido que eu morrera só minha

mulher avisada de longe virá e me porá a mão sobre a testa

os demais não não disponho do olhar para me defender

o tempo depressa se passa são trâmites legais até me terem deixado

debaixo do chão bem debaixo do chão sem frases lidas

ou gravadas sem sentimento nenhum

Uns dias depois um pequeno grupo junto a uma grande janela

olhará a neblina da manhã de janeiro

e terá mãos que eu tive para os meus problemas de vivos

Onde eu estive sobre uma mesa com uma perna cruzada

suaves começarão a suceder-se e acumular-se os dias

como cartas revistas linguísticas ou livros adormecidos

despertos apenas no momento fugaz da leitura

A vida será indistinta virá até nós como árvores

rodará em volta como um lençol até cobrir-nos os ombros

Falareis de mim não posso impedir que faleis de mim

mas já nada disso me pesa como o simples facto de ter de ser vosso amigo

Estou só e só para sempre e só desde sempre

mas antes por direito de opção. Agora não

Deixaram-me aqui doutor em tantas e tão grandes tristezas portuguesas

e durmo o sono das coisas convivo com minerais preparo a minha juventude definitiva

Era como eu esperava mas não posso dizer-vos nada

pois tendes ainda o problema e a cara da pessoa viva"

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