domingo, 15 de novembro de 2009

Texto que gostaria de ter escrito (1)

Um texto mais que merecido, vindo de uma das pessoas que mais admiro, a jornalista FErnanda Câncio, em homenagem a António Sérgio, um Senhor da Rádio.

"não sei se já escrevi este post. andei anos a pensar escrevê-lo. em post, em carta, em telegrama, em artigo, em entrevista. é possível que tenha hesitado de mais. é possível que tenha soçobrado à impressão de que não tinha nada de facto para perguntar ou elaborar sobre ele. que estava, ou me sentia, demasiado próxima -- e que isso, que não me impediria de fazer um bom trabalho (não é, nunca é, por aí, pelo contrário) me deixava, como se diz em brasileiro, 'sem jeito'.



resumindo: este homem significava demasiado para mim para correr o risco de fazer figura de ursa a falar dele ou com ele. era aliás um pouco diferente de um homem: era uma voz, uma intensidade, uma revelação. durante meses -- anos? -- segurou-me e assegurou-me. ouvir todos os dias o som da frente, que passava muito tarde na rádio comercial, era um ritual inabalável. gravar cassetes, ligar a participar nos concursos para entendidos -- e que orgulho quando os ganhava, quando fui à rádio comercial buscar os prémios(um era o big science, da laurie anderson) --, nas votações das 'melhores canções de amor e ódio' (ganhou o wild thing, versão da siouxsie and the banshees), nisto e naquilo.



portugal era muito, muito diferente. aquilo que antónio sérgio passava no seu programa não estava acessível de outro modo. e aquilo que ele passava num programa à meia noite foi -- é tão difícil explicar isto a quem tem hoje 18 anos -- fundamental para um processo de formação identitária de uma série de pessoas, entre as quais me conto (as outras conheci depois, e esse conhecimento aconteceu também em consequência da música). um processo de descoberta de um mundo do qual nos sentíamos parte e que se traduzia em bandas, vozes, guitarras. uma espécie de revolução cultural, estética e filosófica semi clandestina que fez gente de todo o país sentir que algures havia alguém que sentia, via e queria dizer exactamente o mesmo que sentíamos, viamos e queríamos dizer.



gostava de ter dito isto a antónio sérgio alguma vez -- o quanto ele foi importante para mim e o quanto ainda sou hoje e provavelmente serei sempre uma consequência daquilo que me deu a ouvir noite atrás de noite -- mas nunca fiz a oportunidade. agora passou.



gostava de lhe dizer que foi ele que pela primeira vez me deu a ouvir isto, e depois tudo o que isto implicava (a história da banda que são os new order e as canções da banda que lhes deu origem). e que esta é ainda, tantos anos depois, uma das minhas canções favoritas -- como a voz dele. heaven knows it's got to be this time."

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