sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Texto que gostaria de ter escrito (2)

Quando falei nos meus ídolos, falei em Fernanda Câncio. Aqui fica mais um brilhante texto da jornalista, que foi publicado no Diário de Notícias!

Um tema que eu quero abordar também neste blog, mas ainda não consegui a erudição necessária para tal!

"
A mulher tinha 35 anos. Foi executada a tiro pelo marido, de 41, na manhã de domingo, em Montemor-o-Velho. Nada de novo; só nas últimas duas semanas foram pelo menos cinco as portuguesas baleadas, esfaqueadas, mortas à pancada pelos maridos, namorados, companheiros, ex-maridos, ex-namorados, ex-companheiros.

Esta chamava-se Manuela Costa. A mulher morta - é assim que lhes chamam nas notícias - estava separada do marido há um ano mas continuava a receber visitas dele na sua casa para a espancar. A mulher morta foi pela primeira vez no domingo - dizem as notícias que era a primeira vez, seria?, mas dizem também que "toda a gente" sabia o que se passava - fazer queixa à GNR após mais uma sessão de pancada. Com ela levou a filha mais nova, cinco ou seis anos. No posto, chamaram uma ambulância. Há notícias que dizem que os guardas pediram uma patrulha para a acompanhar. Mas nenhuma patrulha seguiu a ambulância: quem a seguiu foi o marido. A ambulância voltou para trás e parou junto ao posto. O homem também. Saiu do carro, armado com uma caçadeira, e matou a mulher. Dentro da ambulância. À porta da polícia. Na ambulância perseguida, que tem rádio e telemóveis, ninguém alertou as autoridades para a perseguição e para o perigo? E, se o posto foi alertado, como é que não estavam guardas cá fora à espera? E, se os guardas estavam à espera, por que não fizeram nada?

Mas esperem: ainda não acabou. Há uma mulher morta dentro de uma ambulância, uma criança ferida junto à mãe morta pelo pai, isto tudo à porta de um posto da GNR, e que se passa a seguir? Passa-se que os agentes da GNR tiram a caçadeira ao assassino e levam-no para dentro do posto, sem sequer o algemarem, sem sequer o revistarem. Dentro do posto o homem saca de outra arma e dispara. Um guarda morre, outro é ferido. Dizem-me isto as notícias, dizem-me até que o sindicato dos profissionais da GNR se queixou perante isto de "falta de meios". Falta de - eu li isto? - "coletes à prova de bala".

O sindicato não disse "tem de haver um apuramento de responsabilidades, uma pessoa não pode ser morta à porta de um posto da GNR depois de ter feito queixa do homem que a matou". O sindicato não disse "a polícia serve para proteger as pessoas e para cumprir a lei, isto nunca podia ter acontecido." O sindicato não disse "queremos saber como foi possível que aquele homem entrasse armado no posto e matasse o nosso colega". O sindicato não disse nada disto e o ministro da Administração Interna, que tutela a GNR e os bombeiros, também não. Se disseram não ouvi, não li, não sei. Como não sei de anúncio de relatório público sobre o que sucedeu, ou de garantia de que os filhos desta mulher vão ser indemnizados pelo Estado à guarda de quem estava quando foi assassinada.

Mas se calhar é isso: Manuela devia ter um colete à prova de bala. Devia ter nascido com ele. Ela e a filha: coletes à prova de bala, à prova de pancada, à prova de estupidez e de selvajaria, à prova da indiferença dos que sabiam e não fizeram nada, à prova da bonomia com que o homem que a matou foi tratado pelos guardas que não souberam guardá-la, da bonomia com que se olha para a morte desta mulher que estava à guarda do Estado, que nos pediu, a todos nós, que a protegêssemos. Da ironia de sabermos que o que há de novo aqui é isto: um matador de mulheres afinal também pode matar homens. Polícias, até. Se calhar é um assassino."

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